terça-feira, 17 de junho de 2008

Jaipur

Jaipur é uma cidade para se viver um grande amor. Não consigo achar definição melhor. Alguém pode me dizer que a Paris de Rick e Ilse, em Casablanca, é melhor, ou a Verona de Romeu e Julieta. Não. Nem o nordeste brasileiro de Gabriela e Seu Nacib, nem as paragens cariocas de Capitu e Bentinho, nem o frio gaúcho e paulistano das paixões de Caio Fernando Abreu. Não. Nada disso supera o lirismo da cidade rosa. Marajás, princesas, palácios, tudo aquilo que nossos pais contavam ao pé do ouvido, à beira do sono, e que de certa forma moldaram nossa concepção de amor (as mesmas histórias que repito hoje para as minhas sobrinhas). É um estereótipo? Bom, pode ser, mas é dos melhores (pq eu tenho mais de 30 e já me permito acreditar nas pequenas volúpias do coração...*risos*).

Jaipur fica no estado do Rajastão. Foi fundada em 1727 pelo Marajá Sawai Jai Singh. A cidade foi pintada de rosa, a cor da hospitalidade segundo a tradição local, em 1876, ano da visita do príncipe de Gales Edward VII, marido da rainha Vitória. Desde então, a cor é mantida (daí o apelido de cidade rosa).

Cheguei a Jaipur tomada pela credulidade de Varanasi. O meu guia, Yogesh, insistia para que eu conhecesse os monumentos, e eu tentei explicar que não era esse o objetivo da minha visita. Não houve jeito. No seu espanhol hesitante, ele me dizia: “bamos agorita para...”, e lá vinha mais uma visita incrível a um espaço deslumbrante. Demorou até eu compreender que era aquilo, exatamente aquilo que eu deveria fazer ali: treinar o olhar. A partir daquele momento, onde a tentativa de racionalidade deu espaço ao arrepio de pele, é que percebi os cheiros, as ondas de cores, a força do inconsciente coletivo que me unia àquele aspecto da Índia, tão nobre e tão especial quanto os outros.

Uma noite, por meio de contatos do Élson, fomos jantar com o Sr. Krishen Bhatia e família. Que maravilha! Uma mesa de comidas típicas, conversas acalentadoras e o deslumbramento de conhecer um Marajá de verdade (um dos convidados tinha esse título, que hoje é meramente decorativo)! Uau! O conto-de-fadas ali, bem na minha frente, consumado num distinto senhor de trajes casuais e uma maharani vestida de azul. A dona da casa tinha olhos claros e longínquos. Ofereceu-nos, depois do jantar, sorvete com manga e abraços, para a surpresa do meu afeto, tão medroso de causar desaforos à cultura alheia com sua propensão ao exagero (sou daquelas dadas às escandalosas declarações de afeto).

Houve também um almoço com a Seema, indiana casada com o Anderson, brasileiro de Ibitinga. A família nos recebeu como recebe a seus membros e comemos fartamente. Foi a melhor comida da Índia, e olha que este é um páreo duro mesmo para o meu paladar tão “despicantilizado"...*risos*. O cozinheiro estava orgulhoso de nos servir seus quitutes e a sobremesa foi algo, minha gente! Nem sei como consegui emagrecer estes dias ( - 2 kg! Viva! Hahahahahaha).

Numa expressão da gentileza sem limites que habita o rosto moreno e o corpo esguio de Seema, fomos convidadas, eu e a Fê, para um jantar típico da família. Todos estavam separados em grupos: os jovens em um, as mulheres em outro e os homens mais velhos também destacados, em roda, conversando. Entre os moços, uma recém-casada. Vestida de verde, esbelta e de cabelos negros cortados na altura dos ombros, me parecia feliz exibindo sua nova condição, com o bindi na testa e as pulseiras vermelhas nos braços, sinais das bodas recentes. Também estava no grupo a Sônia, prima de Seema, que está noiva (conheceu o futuro marido há 15 dias) e se casará em dezembro ou janeiro. Uma adolescente vestia divertidas – e modernas – saias xadrez e uma baby look com um D&G (Dolce e Gabbana, a grife) gritante. Um rapaz, o noivo de Sônia, que mora em Montreal e trabalha com informática, usava uma camisa azul moderna, jeans cuidadosamente rasgados e cintilantes brinquinhos nas orelhas. A paquera rolava solta! Claro! Eram jovens cheios de hormônios, com a vida pela frente e a descoberta recente do friozinho na barriga, aquele que a paixão causa. Ou vc acha que isso é diferente em algum lugar do mundo? Tsc, tsc, tsc. Somos todos humanos, baby, irrepreensivelmente humanos, dolosamente humanos, deliciosamente humanos.

A festa estava danada de boa! O gramado verde corria sob nossos passos e o calor respeitou os meus limites (e eles são tão tênues, tão trêmulos!!!). O melhor momento da noite foi, sem dúvida, conversar com as mulheres. Como riram do nosso idioma, da nossa timidez, da maneira confusa como tentávamos nos integrar e responder às questões em hindi que nunca deciframos! O que será que elas me diziam quando enquanto eu respondia com os únicos monossílabos que pude aprender nestes dias? E a aventura da pronúncia do meu nome? – “Giovana”, eu dizia. – “Joana, Iovana, Dioiana”, elas respondiam – e gargalhavam. A lua brigava com as nuvens no céu, mas não choveu. Fui picada por um inseto e pensei: “ah, agora danou-se” (sou muito alérgica), mas que nada! Meu corpo fingiu eu não era com ele, apesar da mão ter queimado durante um tempo. Fomos para o hotel cultivar o sono, fazer adormecer mais um dia de cansaço bom.

Na manhã seguinte, a última na cidade e na Índia, fomos ao mercado, onde finalmente consegui fazer compras para a minha família e amigos (quase não havia me permitido, até então, fazer qualquer programa mais turístico). Os tecidos bailavam, juro que dançavam na minha frente. Os vendedores, como todo bom vendedor em qualquer parte do mundo, identificavam em mim a compradora ideal: uma branquela deslumbrada, cheia de encantamento e dólares no bolso. Eles acertaram quase tudo, menos a parte do dinheiro...hohohoho. Mesmo assim, negociamos e eu consegui trazer um sari para a Juli, a minha cunhada, uma toalha de mesa bordada para minha mãe, camisetas (daquelas bem óbvias, com um ÍNDIA retumbante na frente) para os meninos e alguns lenços para as moçoilas. Não deu pra comprar o narguilé, pedido especial do meu irmão, Renato, mas eu jurei voltar até lá em breve para remediar este meu erro gravíssimo :-)

Peguei o avião em Jaipur e fui para o aeroporto de Delhi, minha conexão para Amsterdã e a minha despedida. Fernanda ficou ali, simbolizando uma parte da minha nação que agora mora distante, lá no oriente. Passei as 4 horas de espera do meu vôo tentando compreender a experiência indiana, mas foi inútil. Está, como eu disse, além da compreensão racional, pelo menos para mim. No caminho, reli nossa sinopse e – acredite – me parecia outra sinopse! Mais do que o material que coletei, mais do que as entrevistas que fiz, mais do que os contatos que firmei, entendi que Gloria me mandou para a Índia para mergulhar no que não se aprende nos livros, nos filmes. Lá do alto, atravessando o oceano, imaginava ela com a sua voz rouca, amiga, protetora, desafiadora e maternal me dizendo:

- Me entende agora?

Sim, Gloria, eu entendo.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Cheguei ontem. Horas, horas, horas de vôo (jaipur - Delhi - Amsterdã - São Paulo). No aeroporto, o carinho da minha família (sair é sempre bom, voltar é sempre melhor ainda). O jet lag me pegou de jeito, galera! Fui dormir às 9 da noite e acordei às 2 da madrugada, com fome e sono algum. Rodei pela casa, que descansava alheia ao meu relógio biológico. Agora, começo da tarde, meus olhos pesam. Ok, ok, vai passar...*risos*.

Vou colocar as fotos de Jaipur e escrever o relato da viagem. Ainda quero contar muito por aqui, compartilhar. Mas tenho a impressão de que nada, nunca, de nenhuma forma, transformará esta experiência que minha alma carrega, e que é tão minha e tão pública, em palavras, estes sentimentos em verborragia. Tenho 31 anos, a maioria deles bem vividos. Guardo comigo os melhores instantes. Sou abençoada, não há outra expressão.

Preciso agradecer algumas pessoas.

Gloria, que partilha comigo estas possibilidades todas, estes anos de aprendizado. Que me permite fazer parte das histórias que contrói de maneira tão sublime, mágica. Ele é minha mestra em vários aspectos da vida (o trabalho é apenas um destes). Meu maior orgulho é dizer: sou pesquisadora da Gloria Perez!

O Elson, cônsul da Índia em Minas Gerais, e toda a sua família, que me deram as mãos, que me receberam como filha, que entendem as minhas dúvidas banais sobre as coisas mais óbvias e que acreditaram que a Índia era uma paragem da minha existência.

Fernanda, Fernandinha, companheira sem igual, inteligente, dona de si, protetora. Eu não precisava falar e ela entendia, ela pensava e eu respondia. Pq amigo, meu bem, amigo a gente não encontra, amigo a gente reconhece.

Erika Matta e toda equipe de produção da Tv Globo, pelo carinho e cuidado.

Agora: Jaipur.

sábado, 14 de junho de 2008

"Pode ir armando o coreto
e preparando aquele feijão preto.
Eu tô voltando"*

E ainda tenho muito pra contar.

*Tô voltando. Chico Buarque.

Jaipur

Adeus, Jaipur.

Adeus, casas cor-de-rosa com ramos brancos,

pórticos, peixes auiz nos arcos de entrada.

Adeus, elefante de língua rósea.

vestuto irmão,

comedor de açúcar

ancião paciente.

Adeus, Jaipur, e espelhos de Amber Palace,

jardins extintos, grades redondas,

mortos olhos que espiavam por essas rendas de mármore.

Adeus, cortejos dourados, música de casamentos,

festa bailada e cintilante das ruas, e trinados de fluata.

Adeus, sacerdotes de candeia fumosa,

tantas luzes por tantos bicos,

e os gongos e os sinos de porta de prata

e a Deusa antiga,

e a existência fora do tempo.

Adeus, pinturas, corredores, mirantes,

muralhas, escadas de castelo, mendigos lá embaixo,

criancinhas que pedem esmola como quem canta.

Adeus, Jaipur.

Adeus letras do observatório,

pulseiras de prata de mulheres que vendem tangerinas

pelo crepúsculo.

Adeus, fogareiros de almôndegas,

adeus, tarde morna de erva-doce, canela e rosa,

cravo, pistache, açafrão.

Adeus, cores.

Adeus, Jaipur, sandálias, véus,

macio vento de marfim.

Adeus, astrólogo.

Muitos deuses sobre o Palácio de Vento.

(Onde eu debia morar!)

Sobre o Palácio de Vento meus adeuses: pombos esvoaçantes.

Meus adeuses: rouxinóis cantores.

Meus adeuses: nuvens desenroladas.

Meus adeuses: luas, sóis, estrelas cometas mirando-te.

Mirando-te e partindo.

Jaipur, Jaipur.

* Da Cecília Meireles, que esteve na Índia em 1953.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

São quase 10 horas da noite de um dia bom. O calor, que ontem passou dos 40, foi amenizado por momentos de chuva rápida. Claro que não nos furtamos ao banho! Fomos abençoadas pelas chuvas em Jaipur, com o rosto respingado e alma de criança (o pobre do Yogesh, nosso guia, deve pensar que somos doidas!).

Mas antes de contar as aventuras nesta parte da Índia, quero falar mais de Varanasi. Segundo Anil, que nos orientou por lá, a cidade oferece algo para todo mundo, depende do que os olhos alcançam. Os nossos, felizmente, estavam alerta! Baita experiência de vida!!!

Na segunda-feira pela manhã, fomos, mais uma vez, ao Ganges. Um pouco familiarizadas com aquele tumulto no peito, ficou mais simples olhar, respirar, crer no óbvio, crer no "diante de nós". Um guru nos abençoou. A vista estava plácida, serena. Toda a margem de Ganga Ma parecia sorrir. A ondulação das águas era uma resposta às ondas da minha maré no dia anterior. Foi pleno.

Depois, fomos conhecer o Widow Ashram, para onde algumas mulheres vão depois da morte do marido. É um viuvário (há dois no Rajastão, o estado onde estamos). Lá moram 18 mulheres, todas com mais de 60 anos e sem condições financeiras de prosseguir a vida fora dali. Conversamos com Srimanti Shantí,que nasceu em Bihar e mora há seis anos na casa. É uma mulher pequena, de mãos fortes em contraste profundo com o corpo frágil. Os olhos são atentos e percorrem rapidamente o meu rosto quando eu digo que quero conversar. Deve ser estranho, não? De repente, uma branquela de cabelos curtos demais, calça longa demais, instrumentos múltiplos nas mãos (mochila, máquina fotográfica, caderno e blá, blá, blá) pede para entrar - um pouco - na rotina absoluta que se leva naquele espaço, entre os quatro quartos com utensílios de alumínio, camas simples e proteção contra mosquitos. Ela assente com um gesto de cabeça e vamos nos descobrindo.

Viúva há 15 anos, Srimanti tb perdeu o filho. Para não ser um fardo para a nora e o neto, foi morar no viuvário. Diz que a vida é boa. Não usa cosméticos e só veste branco em memória do marido (é a cor das viúvas). Cozinha a própria comida e me diz, orgulhosa, que recebe visitas sempre. Não parece triste, não parece angustiada. A liberdade restrita (os portões da casa abrem às 7 da manhã e são fechados às 5 da tarde) não incomoda. Será que ela não pensa o mesmo de mim? Será que a liberdade restrita é a minha, justamente pq penso que tenho controle do caminho por onde quero seguir e tento lidar com toda a impertinência de uma sociedade contemporânea e cheia de firulas existenciais? É bem possível.

A próxima parada foi o Ashram da Ordem Ramakrishna. Gente! Que incrível! Há um hospital, uma escola para monges, espaço para hospedagem. Quem nos recebeu, com carinho, atenção e condescendência, já que as minhas perguntas são de uma iniciante, foi o Swami Nilakanthanada. Homem gentil, de fala mansa e concreta (emite uma certeza que se pode pegar nas mãos. A voz dele é senhora do espaço onde caminha!), apontava orgulhoso para as instalações. E, acreditem, era um piadista! Nos fez rir, riu do meu inglês, contou anedotas. A Índia, mais uma vez, me dá uma lição: a santidade está ao alcance do meu ponto de vista, e aquele homem era o horizonte desta condição. Namastê, o Deus em mim saúda o Deus em vc!

O último compromisso do dia (e que compromisso!!!) foi assistir à cerimônia do entardecer no Ganges. Pegamos um barco, fomos para o meio do rio e nos deixamos envolver pela celebração de formas e cores que se emoldurava pela noite. O que é aquela força, o que são aquelas cores, aquele som? O fogo sagrado vai tomando o tempo e quando se vê já é hora de partir, pq o mundo parou por alguns instantes, enquanto os monges conduziam os rituais, mas deve recomeçar simplesmente pq é assim e assim é farto. Juro que senti o balançar das águas pelo corpo durante toda a madrugada e ainda agora, relembrando, sinto arrepiar o braço. Fernanda tb adorou.

Amanhacemos a terça-feira no mesmo lugar, desta vez para ver a cerimônia da manhã. É lúdico! Indianas lavam os cabelos, homens juntam as mãos em reverência ao sol, crianças brincam de pular dos ombros de seus colegas, jovens escovam os dentes. Um sadhu observa seu grupo andar em círculos. Bem perto, uma mulher de outro lugar, possivelmente européia (branca, branca, branca!), medita em posição de lótus. O dia desponta numa das cabeceiras do rio e eu me despeço de Varanasi, um lugar onde se perde, se encontra. Se refaz. Foi tão bom que eu tenho vontade de me dizer: "- Hei, Gio, prazer em te conhecer". Mãe Ganga me pariu pela segunda vez (mas sei que ainda nascerei outras tantas pela vida...).

Beijos meus.
E esta é pra minha mãe, pq mãe é mãe a a minha tá com saudades.

Eu, Fê e o Sr. Krishen Bhatia, que nos recebeu ontem para um jantar.


Viu, Dona Néia? Eu tô bem, tô comendo, tô tomando água com eléctron (pq a Fernanda me obriga!), tô passando bloqueador, não tô pegando carona com estranhos, só ando na faixa de pedestres (ô!). E carrego aqui toda a saudade do (meu) mundo.
Pra começar a contar:
Yogesh, nosso guia, e Abdul, nosso motorista. A equipe de Jaipur.
Quando entramos no carro, o hino é:
- Gooooooood Mooooorning, Abduuuuuuuuuuuuuuuuuul!!!
Quando nos perdemos por aí:
- Yogeshhhhhhhhhhhhhhhhhhhh? Donde estás tu???
:-)
Parece divertido, não? E é.